Reisado é um alto guerreiro de dias de Reis onde se representa o universo de um reino com seu rei, rainha, princesa, secretário, embaixador e uma fileira de guerreiros como sendo seu exército. Nesse micro universo encontramos figuras caricatas encontradas no social e figuras fantásticas de um mundo misterioso, imaginário, figuras ameaçadoras ou cativantes. Nele também encontramos uma dança unida a um jogo de espadas (não sabendo onde começa um e termina o outro) de rara beleza que conserva a força, coragem, vigor e destreza física humana só reencontrada nos povos mais antigos, que chega a assustar e emocionar os homens modernos. Ir de encontro com a beleza desse mundo e constatar que não existe nenhum trabalho voltado para o registro, descrição, aprendizado, catalogação ou criação de metodologia para o repasse desse conhecimento do povo é intrigante.
Entrei em contato com o Reisado há cinco anos a partir desse encontro carrego comigo a vontade de me desenvolver no estudo e treinamento dessa dança-jogo. Antônio Gomide França, Segundo filho da família mambembe Carroça de Mamulengos, teve desde pequeno a oportunidade de se desenvolver ao lado dos Reisados do cariri cearense, absorvendo tesouros do brinquedo e se esquivando do que é nocivo ao próprio brinquedo como as disputas violentas entre um reisado e outro; a vaidade dos brincantes focada no ego de superioridade e não na beleza do jogo e da dança, sabendo distinguir a malícia nociva da que dá beleza e vida ao jogo. Sendo uma pessoa introduzida no brinquedo já desmistifica a visão conservadora da tradição sobre a aprendizagem, estendendo-a para alem daquele grupo étnico.
Antônio com o Reisado Mirim Menino de Deus, Crato-CE
Observo que na sua absorção da dança e do jogo da espada, devido a sua experiência teatral com a família, Antônio acrescenta contribuições significativas como um apanhado dos passos de dança, difícil de encontrar em jogadores nativos, e o clareamento de movimentos dos pontos do jogo. Outro ponto importante é como expõe o lado positivo do jogo, ressignificando os símbolos e lhe dando um significado nobre. Ao lecionar, seja em uma oficina ou em nosso encontros pessoais, está sempre frisando o prazer pelo jogo e a beleza; o brincar como uma busca em desenvolver habilidades, comunicação corporal e postura; o jogo como uma forma de buscar a harmonia, perfeição, equilíbrio, paciência. Essa colocações podem ser consideradas muito inclinadas a um discurso zen ou ingenuamente sublime, mas se olharmos para traz veremos que culturas antigas relacionavam ao jogo conceitos muito próximos, como também comenta o mesmo entendimento o teórico Schiller (1759-1805) em seus tratados sobre educação. Huizinga (2007) escreve em seu livro (Homo ludens: o jogo como elemento da cultura) que o Jogo absorve o jogador de maneira intensa, fascinante como uma paixão, tornando-se carne, corpo e espírito. No mesmo sentido, mas de maneira prática e intuitiva, Antônio diz que ”o jogo é uma luta, pois é um desafio com pontos determinados na qual o espírito esta voltado para o interior”.
Para somar com o aprendizado, trazer linguagem para repasse desse conhecimento a seus alunos da cidade de João Cabral, em Juazeiro do Norte, trazendo memória aos jogadores para se trabalharem, ele denominou os três “P”: Perna, Pulmão e Punho, sendo esses os três veículos que constituem o corpo do Jogador, a maneira de se trabalhar toda a capacidade de jogo, movimentação e força: Os três P’s: Perna é o veículo, a beleza, o mandigado, o jogo, a esquiva , o ataque, o equilíbrio é o movimento. Pulmão é a respiração, junto com o zabumba (o Maestro do reisado), e é discípulo pois ele tem que estar seguindo diretamente aquele embalo do toque, pulsando junto com a espada sem parar de respirar, para não se cansar e conseguir ver todo o movimento com uma lentidão, parando o equilíbrio no ar, tentando entende o fluir do jogo nessa meditação ativa, com o pensamento focado na respiração. Punho é tudo o controle, é o fio condutor do trabalho da espada que se estende até a sua ponta. É a memória dos pontos, a atenção e a defesa.
Com a graça de um poeta e a segurança de quem sabe o que está falando, Antônio Gomide nos presenteia com um belíssimo escrito intitulado “PEQUENO CATAR DE GRANDES JOGADORES”, onde ele compartilha mandamentos importantes para o jogo e a alma do jogador: “O jogo é a busca do conhecimento”,“A violência é o medo”, “A covardia é o prêmio do errado”, “Uma espada sem controle é ferro molhado de sangue”,”A falta de simplicidade é a certeza que encontraremos melhores que nós”,“Tem coisas neste mundo que não pode ser ensinado para os que não tem atenção. Ela poderá somente ser aprendida na vida que se debruça com amor”.
E termina seu escrito com uma oração para sagrar o momento de jogo:
"EU NÃO TENHO MEDO
TENHO CONTROLE DE MEU JOGO
NÃO QUERO FERIR NEM SER FERIDO
MINHA ESPADA BATE DEVAGAR".
Texto de Joaley Almeida, com compilações da entrevista com Antônio Gomide.
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